Originalmente publicado em Novembro de 2014, a edição número 7 da revista francesa "Kaboom" trouxe uma entrevista exclusiva com Masashi Kishimoto, autor do mangá Naruto desde sua criação em 1999. As palavras do famoso mangaká foram coletadas por Stéphane Beaujean (Kaboom) e por Christel Hoolans (Editora Kana, que lança os mangás Naruto na França). É uma oportunidade de dar uma olhada na franquia Naruto, que se estabeleceu como digno sucessor de Dragon Ball, mangá esse que inspirou Kishimoto para criar sua série.
Confira entrevista original aqui, e a tradução para o inglês aqui.
Confira entrevista original aqui, e a tradução para o inglês aqui.
Entrevistador (E): Há muitos órfãos em Naruto. Você está interessado nesse arquétipo de personagem?
Kishimoto (K): Eu tive a chance de crescer em uma família feliz com meu pais. Mas eu tive a oportunidade de observar de perto o que a solidão pode fazer com uma pessoa, alguns dos meus velhos amigos eram órfãos. Havia um amigo que era mais velho do que eu e eu me dava muito bem com ele. Conforme o tempo passava e nos aproximamos, pude ver sua frustração de ser um órfão.
Ninguém dava para ele um brinquedo novo e não havia ninguém para lhe dar presentes também. Essa pessoa me causou um grande impacto, e me lembro que eu costumava sentir pena dele, ele me disse que os pais podem ser uma fonte de problemas e conflitos. Isso talvez fosse verdade, mas senti que essa resposta era algum tipo de orgulho ou provocação. Eu não sei por que, mas quando criança, eu era muito curiosa e sensível sobre problemas familiares.
Me lembro de ouvir com atenção as histórias de meus amigos sobre como seus pais se divorciaram e como estavam morando com suas mães. Eles confiaram seus problemas a mim e eu tentei dar conselhos para eles da melhor maneira possível. Ao mesmo tempo, me conscientizei de seus problemas e estados psicológicos.
Assim, quando chegou a hora de contar uma história sobre ninjas, me lembrei das pequenas vilas de Nara... como Iga ou Kouga, onde poderia aprender a ser um espião. A morte era algo conhecido desde cedo nessa carreira e as crianças em treinamento sabiam que não conheceriam seus pais por muito tempo. Quando eu decidi que Naruto e seus amigos iriam ser órfãos, as memórias dos meus amigos de infância (em especialmente este amigo mais velho) voltaram para mim com tudo. Eu sabia o que ia contar e mergulhei nas minhas memórias de infância para criar os múltiplos personagens de Naruto. Eu tinha muito a dizer.
(E): A propósito, relações de sangue, famílias reais... quando elas aparecem em Naruto são sempre disfuncionais. A única família que importa são os ninjas, ela é uma comunidade gigantesca. De onde veio essa ideia?
(K): Não limitar as famílias por suas relações de sangue parecia obrigatório para mim. O exemplo mais óbvio disso é a relação entre Naruto e Jiraiya. Esses dois solitários, um eremita e um órfão, fizeram a relação entre mestre e aluno funcionar muito bem. É muito familiar. A palavra "família", como a maioria das pessoas entende, é muito limitada no que me diz respeito.
Especialmente quando estou escrevendo para crianças que podem ou não enfrentar o problema dos pais se divorciando.
Essa concepção de família vem da região em que cresci, onde os povos costumavam se reunir em grupos chamados "Kumi" (clãs ou grupos em japonês). O costume era, você tinha que tratar cada membro da comunidade como sua própria família. Em casa, o clã era chamado de "Kou-Gumi". E costumávamos nos reunir em grupos de 8 ou 10 pessoas para recolher madeira para preparar os banhos, outros cultivavam arroz e aqueles que terminavam cedo as tarefas ajudavam os outros.
Membros de clãs se reuniam a cada mês para comer juntos e em funerais eles ocupavam os primeiros assentos. Se alguém da família convidasse o sacerdote para comer depois de uma cerimônia fúnebre, os outros membros do clã também seriam convidados para o jantar. A maneira como o clã funcionava era como uma família real, então, é por isso que esse sistema "Kumi" me causou tanto impacto. Minha aldeia, de certa forma, funcionava como as comunidades criadas pelos ninjas da antiguidade.
Essa experiência me influenciou quando criei o sistema de aldeia ninja em Naruto. Desde o início, os ninjas deveriam ser uma grande família.
(E): No final, Naruto e Sasuke são duas faces do mesmo problema: eles são órfãos. Mas eles lidam com as coisas de maneiras completamente diferentes.
(K): Foi deliberado por mim que esses dois personagens se oporiam um ao outro pela forma como pensam. A diferença é que Naruto é órfão de nascimento, mas Sasuke ainda teve seus pais. E Sasuke sofre com a presença de seus pais, e sofre muito mais depois que eles morrem. E é aí que está a primeira diferença emocional.
Sasuke diz que Naruto não pode entender seu sofrimento porque ele nunca teve a chance de ter um vínculo com seus pais. E na verdade, Naruto realmente não entende. Naruto acabará por formar um elo de mestre/estudante com Jiraiya. Jiraiya dá atenção, ensinando e cuidando de Naruto, como um pai adotivo.
Um pai adotivo que Naruto vai apreender a gostar e será morto por Pain. Neste ponto, Naruto entende como uma família poderia ser e começa a entender o que Sasuke poderia sentir. Mas essa experiência chega tarde demais e ele não tem a chance de falar sobre isso com Sasuke.
Sua reação ao perder os mais próximos os torna ainda mais diferentes. Sasuke deixou-se ser controlado pelo ódio. Um ódio tão forte quanto o amor que ele costumava sentir. Mas para Naruto, a perda vem com uma auto-reflexão sobre vingança, dor e como a personalidade e as ações podem evoluir com base nisso. Depois de ver o que vingança fez para Sasuke, Naruto mostra uma enorme quantidade de autocontenção e ele sente que deve aprender a se controlar para não ficar assim.
Esse é o seu verdadeiro desempenho como herói: ele sobrevive à dor e à perda sem se entregar à vingança e ao ódio, percebendo a diferença entre interesse pessoal e interesse público.
Continuei jogando com essa oposição para que pudesse crescer passo a passo. Eu queria pegar o leitor de surpresa. Naruto, a princípio, parece muito emocional e instintivo e Sasuke é aquele que parece frio e sem emoção. Mas com o passar do tempo, os papéis são invertidos. Emoções e lógica nem sempre são óbvias a princípio.
Para ser franco, a realidade é mais complexa. Eu me sinto mais perto de Sasuke, pois nunca seria capaz de esquecer ou perdoar aquele que mata minha família. Eu posso me ver no modo como Sasuke reage, mas reagir como ele leva a uma avassaladora quantidade de ódio e violência e à guerra. A história se repete e o círculo deve ser quebrado.
Esse mangá fala muito sobre não repetir os erros do passado. E para ser completamente honesto, superar experiências traumáticas como Naruto parece um pouco idealista e ingênuo para mim. Mesmo assim, esse tipo de idealismo utópico deve ser escrito e defendido em mangás Shounen. Mangás Shounen devem carregar a esperança, acima de tudo.
(E): Mais frequentemente do que não, as crianças são vítimas da conspiração de seus pais, mas elas não se opõem e são meio submissas nesse aspecto. Em especial o próprio Naruto. Você percebeu isso e pode explicar por trás de seu desejo de mostrar o otimismo de Naruto, apesar da sua infância atormentada pela sociedade?
(K): Eu era uma criança muito obediente e nunca contestava a autoridade de adultos, meus pais ou até mesmo meus professores. Suas palavras eram verdade para mim e nunca me questionei. Muito naturalmente, essa parte de mim entrou em meus personagens. A maioria das crianças que eu conhecia eram como eu e aqueles que eram mais independentes, mais livres ou mais "punks", eu diria que nunca me causaram impacto. Eu não senti vontade de colocá-las na minha história.
Por instinto, naturalmente coloco "bons garotos" em minhas histórias. Quando o capitalismo entrou no Japão, depois da guerra, isso levou a um período muito confortável para a minha geração. É por isso que o mínimo que posso fazer é agradecer e obedecer como sinal de gratidão.
Eu estava com medo de meus pais e da sociedade, é claro, mas nunca tive qualquer tipo de frustração. Eu silenciosamente observei as contradições nos discursos dos adultos e simplesmente não expressei minha opinião. Nas meus mangás, claro, eu expresso minha opinião. Eu expresso minha opinião com mais clareza, com mais liberdade, já que escrevo a história do mundo que criei. Isso é um pouco covarde, talvez (risos). Eu não vou dizer que sou anarquista, sou uma pessoa bastante obediente, fora das minhas histórias.
(E): O mundo de Naruto é sempre acometido por várias ameaças, primeiro política. Mas pouco a pouco, você revela que o ódio que os inimigos sentem é apenas uma máscara, uma máscara para esconder o trauma da infância, as feridas psíquicas e as cicatrizes pessoais que o tempo transformou em algum projeto maluco.
(K): Nos primeiros capítulos de Naruto, eu já falo sobre guerras de poder, questões e projetos dos três principais protagonistas. Mas o que me interessa não é o objetivo final, mas como eles chegaram a ter esse objetivo em primeiro lugar. Como eles chegaram a agir como eles? Eu realmente escavo esse processo psicológico. Eu acho que o leitor é como eu: ele quer entender. Então eu falo sobre o lugar onde os personagens crescem, o raciocínio por trás de seus atos. Eu tento fazer o leitor sentir empatia por um personagem que parece mal à primeira vista.
Na maioria dos mangás shounen, o inimigo é o mal supremo, e não se pode argumentar com ele. Incontáveis mangas fazem isso e eu não queria que Naruto fosse uma repetição de outras histórias.
Então, ao invés de focar nos poderes e ações do inimigo, eu prefiro contar o seu nascimento, e como ele se transformou em um monstro. As motivações desses personagens são bastante simples na maioria das vezes, é sempre pessoal, como problemas de infância ou experiências traumáticas que fazem o leitor se identificar com o personagem e sentir empatia por ele.
Eu sempre tento dar algumas dicas sobre o seu passado aqui e ali para que os personagens não sejam muito simples. Eu progrido passo a passo para me certificar de que o leitor possa se identificar com o personagem devagar e progressivamente. Eu me certifico de criar personagens que pareçam diferentes um do outro, e diferentes dos outros mangás da Jump.
(E): Falando sobre diferenças, uma das melhores coisas de Naruto é o seu trabalho nos designs do personagem. Você não usou nenhum estereótipo do Japão militar e medieval. Você trabalha com as roupas, sabe da moda e do que é popular. De onde vêm essas influências?
(K): Os animadores da série animada Naruto muitas vezes me elogiam pelos meus projetos, porque eles são loucos, o que torna meu trabalho ainda mais difícil. Pessoalmente, não estou realmente ciente se é bom ou não. Pode parecer óbvio, mas eu queria me distanciar do ninja clichê vestido de preto.
Eu não vejo nenhum motivo em usar uma imagem que já foi usada inúmeras vezes. Então eu tomei a direção oposta. Um rapazinho loiro de macacão, que nem é japonês. Eu queria que meu personagem fosse desnacionalizado, como os personagens de Akira Toriyama. Essa foi a ideia básica.
Depois, há algumas particularidades baseadas em minhas obsessões pessoais, como zíperes. Achei engraçado usar o anacronismo nesse cenário medieval, como as sandálias. Adoro desenhar dedos e pés. Eu devo ser um fetichista de pés e dedos. Ok, isso saiu estranho, eu admito.
Sobre os designs básicos, eu costumava ler algumas revistas de moda e pegava inspirações de algum design de moda que eu gostava para que eu pudesse personalizá-las em meus personagens. Mas eu parei de colocar detalhes, os designs estavam ficando complicados para um mangá semanal.
(E): Você mencionou Akira Toriyama. Com Katsuhiro Otomo, ele é uma das suas maiores inspirações. Você foi muito influenciado por seus estilos e até hoje você tem dificuldades em se distanciar de seus estilos. Hoje, como profissional, como você descreveria os estilos de Otomo e Toriyama, em termos técnicos. E o que resta do trabalho deles hoje?
(K): Otomo e Toriyama me impressionaram no momento em que descobri seus mangás, quando eu era adolescente. Akira Toriyama mudou para sempre os mangás shounen com uma estética pop. Eu tirei muito do Dragon Ball para criar o Naruto. Uma jornada iniciática, o personagem envelhece, ele enfrenta dificuldades incríveis que não podem ser superadas a princípio e ele deve superar essas provações com esforços incríveis e uma história dividida em duas partes principais.
O estilo de Toriyama ainda me impressiona até hoje, e quando criança, passava muito tempo analisando seu estilo. Os corpos não são realistas, são desproporcionais e, às vezes, simplificados ao extremo. Isso pode ser estranheza ou falta de jeito, mas não é. Tudo é definido e tem um propósito.
Ele está tentando criar um efeito: cômico ou dramático. E a maneira como ele desenha seus planos de fundo mostra o quanto Toriyama é um mestre: as proporções e as perspectivas estão no ponto e detalhadas. Há contraste entre seus personagens e fundos que eu realmente gosto, mas não consigo reproduzir. Toriyama é um mestre de efeitos gráficos.
Eu amo o quão fácil é ler seus painéis. Ele desenha suas cenas com um pouco mais de distância do que normalmente é feito, a fim de ampliar o plano, para poder incluir na imagem mais protagonistas e detalhes. Esses painéis mostram o quanto a direção, após a ação e a interação com o plano de fundo são dominadas: cada personagem está no lugar certo, sem contradições. É ainda mais óbvio em sequências de ações, onde há luta, as ações se encaixam perfeitamente uma com a outra e fica tudo muito claro para o leitor entender, diminuindo o esforço para ler!
Muitas vezes me dizem que meu mangá é difícil de ler. Mas a habilidade de Toriyama em dividir a ação e facilitar a leitura é incomparável. E ele usa essa habilidade com uma variedade de enquadramentos, como o ângulo de cima em que ele é excelente.
Otomo também é um mestre incrível. Ele empurrou seu senso estético em uma direção completamente pessoal. Ele cuida de todos os detalhes, mesmo sabendo que o leitor provavelmente não perceberá isso. Eu amo isso dele. Suas obras deixaram uma impressão em mim, como Domu ou Akira.
Para mim, os temas de seus projetos não são óbvios, mas são mais comumente explorados por seus personagens. Akira nunca será superado no que diz respeito a mim. Otomo foi inspirado por Moebius e, no que diz respeito à arte, ele está em outro nível comparado a mim. Não sou páreo e isso não pode ser debatido. E eu nem estou falando sobre sua habilidade na criação de painéis, ritmo e ângulos. O foco sempre muda e ele pode aplicar deformações a cada um dos seus ângulos com uma precisão insultante. Seus ângulos deformados, como em fisheye (olho de peixe), são perfeitos e não são gratuitos.
Eles existem para fazer o personagem se expressar. É como se Otomo tivesse uma câmera digital em seu cérebro, é muito raro em mangás. Ele é o único no Japão, com Tayio Matsumoto, que também pode fazer isso. Não é coincidência ambos foram influenciados por histórias em quadrinhos europeias, Moebius, especialmente. Otomo é o primeiro que eu realmente senti ter conseguido remover a barreira entre mangás e cinema. Domu era como ler um filme, e eu nunca percebi que você poderia fazer isso antes de lê-lo.
(E): Naruto está prestes a terminar. Como você decide quando uma história como essa deve terminar? Você tem alguma dúvida sobre como terminá-lo?
(K): Para mim, Naruto não pode existir sem Sasuke, seu oposto. Como cores complementares, eles não podem existir sem um e outro. Naruto quer ser reconhecido e Sasuke não reconhece ninguém além de si mesmo. Se eles conseguirem resolver seus problemas, o relacionamento deles chegará ao fim e esta história não terá nenhum motivo para continuar. Ainda tenho algumas dúvidas, mas tenho a última cena gravada em minha mente. Eu ainda preciso desenvolver o personagem de Obito e tudo estará pronto para o grande final.
Ninguém dava para ele um brinquedo novo e não havia ninguém para lhe dar presentes também. Essa pessoa me causou um grande impacto, e me lembro que eu costumava sentir pena dele, ele me disse que os pais podem ser uma fonte de problemas e conflitos. Isso talvez fosse verdade, mas senti que essa resposta era algum tipo de orgulho ou provocação. Eu não sei por que, mas quando criança, eu era muito curiosa e sensível sobre problemas familiares.
Me lembro de ouvir com atenção as histórias de meus amigos sobre como seus pais se divorciaram e como estavam morando com suas mães. Eles confiaram seus problemas a mim e eu tentei dar conselhos para eles da melhor maneira possível. Ao mesmo tempo, me conscientizei de seus problemas e estados psicológicos.
Assim, quando chegou a hora de contar uma história sobre ninjas, me lembrei das pequenas vilas de Nara... como Iga ou Kouga, onde poderia aprender a ser um espião. A morte era algo conhecido desde cedo nessa carreira e as crianças em treinamento sabiam que não conheceriam seus pais por muito tempo. Quando eu decidi que Naruto e seus amigos iriam ser órfãos, as memórias dos meus amigos de infância (em especialmente este amigo mais velho) voltaram para mim com tudo. Eu sabia o que ia contar e mergulhei nas minhas memórias de infância para criar os múltiplos personagens de Naruto. Eu tinha muito a dizer.
(E): A propósito, relações de sangue, famílias reais... quando elas aparecem em Naruto são sempre disfuncionais. A única família que importa são os ninjas, ela é uma comunidade gigantesca. De onde veio essa ideia?
(K): Não limitar as famílias por suas relações de sangue parecia obrigatório para mim. O exemplo mais óbvio disso é a relação entre Naruto e Jiraiya. Esses dois solitários, um eremita e um órfão, fizeram a relação entre mestre e aluno funcionar muito bem. É muito familiar. A palavra "família", como a maioria das pessoas entende, é muito limitada no que me diz respeito.
Especialmente quando estou escrevendo para crianças que podem ou não enfrentar o problema dos pais se divorciando.
Essa concepção de família vem da região em que cresci, onde os povos costumavam se reunir em grupos chamados "Kumi" (clãs ou grupos em japonês). O costume era, você tinha que tratar cada membro da comunidade como sua própria família. Em casa, o clã era chamado de "Kou-Gumi". E costumávamos nos reunir em grupos de 8 ou 10 pessoas para recolher madeira para preparar os banhos, outros cultivavam arroz e aqueles que terminavam cedo as tarefas ajudavam os outros.
Membros de clãs se reuniam a cada mês para comer juntos e em funerais eles ocupavam os primeiros assentos. Se alguém da família convidasse o sacerdote para comer depois de uma cerimônia fúnebre, os outros membros do clã também seriam convidados para o jantar. A maneira como o clã funcionava era como uma família real, então, é por isso que esse sistema "Kumi" me causou tanto impacto. Minha aldeia, de certa forma, funcionava como as comunidades criadas pelos ninjas da antiguidade.
Essa experiência me influenciou quando criei o sistema de aldeia ninja em Naruto. Desde o início, os ninjas deveriam ser uma grande família.
(E): No final, Naruto e Sasuke são duas faces do mesmo problema: eles são órfãos. Mas eles lidam com as coisas de maneiras completamente diferentes.
(K): Foi deliberado por mim que esses dois personagens se oporiam um ao outro pela forma como pensam. A diferença é que Naruto é órfão de nascimento, mas Sasuke ainda teve seus pais. E Sasuke sofre com a presença de seus pais, e sofre muito mais depois que eles morrem. E é aí que está a primeira diferença emocional.
Sasuke diz que Naruto não pode entender seu sofrimento porque ele nunca teve a chance de ter um vínculo com seus pais. E na verdade, Naruto realmente não entende. Naruto acabará por formar um elo de mestre/estudante com Jiraiya. Jiraiya dá atenção, ensinando e cuidando de Naruto, como um pai adotivo.
Um pai adotivo que Naruto vai apreender a gostar e será morto por Pain. Neste ponto, Naruto entende como uma família poderia ser e começa a entender o que Sasuke poderia sentir. Mas essa experiência chega tarde demais e ele não tem a chance de falar sobre isso com Sasuke.
Sua reação ao perder os mais próximos os torna ainda mais diferentes. Sasuke deixou-se ser controlado pelo ódio. Um ódio tão forte quanto o amor que ele costumava sentir. Mas para Naruto, a perda vem com uma auto-reflexão sobre vingança, dor e como a personalidade e as ações podem evoluir com base nisso. Depois de ver o que vingança fez para Sasuke, Naruto mostra uma enorme quantidade de autocontenção e ele sente que deve aprender a se controlar para não ficar assim.
Esse é o seu verdadeiro desempenho como herói: ele sobrevive à dor e à perda sem se entregar à vingança e ao ódio, percebendo a diferença entre interesse pessoal e interesse público.
Continuei jogando com essa oposição para que pudesse crescer passo a passo. Eu queria pegar o leitor de surpresa. Naruto, a princípio, parece muito emocional e instintivo e Sasuke é aquele que parece frio e sem emoção. Mas com o passar do tempo, os papéis são invertidos. Emoções e lógica nem sempre são óbvias a princípio.
Para ser franco, a realidade é mais complexa. Eu me sinto mais perto de Sasuke, pois nunca seria capaz de esquecer ou perdoar aquele que mata minha família. Eu posso me ver no modo como Sasuke reage, mas reagir como ele leva a uma avassaladora quantidade de ódio e violência e à guerra. A história se repete e o círculo deve ser quebrado.
Esse mangá fala muito sobre não repetir os erros do passado. E para ser completamente honesto, superar experiências traumáticas como Naruto parece um pouco idealista e ingênuo para mim. Mesmo assim, esse tipo de idealismo utópico deve ser escrito e defendido em mangás Shounen. Mangás Shounen devem carregar a esperança, acima de tudo.
(E): Mais frequentemente do que não, as crianças são vítimas da conspiração de seus pais, mas elas não se opõem e são meio submissas nesse aspecto. Em especial o próprio Naruto. Você percebeu isso e pode explicar por trás de seu desejo de mostrar o otimismo de Naruto, apesar da sua infância atormentada pela sociedade?
(K): Eu era uma criança muito obediente e nunca contestava a autoridade de adultos, meus pais ou até mesmo meus professores. Suas palavras eram verdade para mim e nunca me questionei. Muito naturalmente, essa parte de mim entrou em meus personagens. A maioria das crianças que eu conhecia eram como eu e aqueles que eram mais independentes, mais livres ou mais "punks", eu diria que nunca me causaram impacto. Eu não senti vontade de colocá-las na minha história.
Por instinto, naturalmente coloco "bons garotos" em minhas histórias. Quando o capitalismo entrou no Japão, depois da guerra, isso levou a um período muito confortável para a minha geração. É por isso que o mínimo que posso fazer é agradecer e obedecer como sinal de gratidão.
Eu estava com medo de meus pais e da sociedade, é claro, mas nunca tive qualquer tipo de frustração. Eu silenciosamente observei as contradições nos discursos dos adultos e simplesmente não expressei minha opinião. Nas meus mangás, claro, eu expresso minha opinião. Eu expresso minha opinião com mais clareza, com mais liberdade, já que escrevo a história do mundo que criei. Isso é um pouco covarde, talvez (risos). Eu não vou dizer que sou anarquista, sou uma pessoa bastante obediente, fora das minhas histórias.
(E): O mundo de Naruto é sempre acometido por várias ameaças, primeiro política. Mas pouco a pouco, você revela que o ódio que os inimigos sentem é apenas uma máscara, uma máscara para esconder o trauma da infância, as feridas psíquicas e as cicatrizes pessoais que o tempo transformou em algum projeto maluco.
(K): Nos primeiros capítulos de Naruto, eu já falo sobre guerras de poder, questões e projetos dos três principais protagonistas. Mas o que me interessa não é o objetivo final, mas como eles chegaram a ter esse objetivo em primeiro lugar. Como eles chegaram a agir como eles? Eu realmente escavo esse processo psicológico. Eu acho que o leitor é como eu: ele quer entender. Então eu falo sobre o lugar onde os personagens crescem, o raciocínio por trás de seus atos. Eu tento fazer o leitor sentir empatia por um personagem que parece mal à primeira vista.
Na maioria dos mangás shounen, o inimigo é o mal supremo, e não se pode argumentar com ele. Incontáveis mangas fazem isso e eu não queria que Naruto fosse uma repetição de outras histórias.
Então, ao invés de focar nos poderes e ações do inimigo, eu prefiro contar o seu nascimento, e como ele se transformou em um monstro. As motivações desses personagens são bastante simples na maioria das vezes, é sempre pessoal, como problemas de infância ou experiências traumáticas que fazem o leitor se identificar com o personagem e sentir empatia por ele.
Eu sempre tento dar algumas dicas sobre o seu passado aqui e ali para que os personagens não sejam muito simples. Eu progrido passo a passo para me certificar de que o leitor possa se identificar com o personagem devagar e progressivamente. Eu me certifico de criar personagens que pareçam diferentes um do outro, e diferentes dos outros mangás da Jump.
(E): Falando sobre diferenças, uma das melhores coisas de Naruto é o seu trabalho nos designs do personagem. Você não usou nenhum estereótipo do Japão militar e medieval. Você trabalha com as roupas, sabe da moda e do que é popular. De onde vêm essas influências?
(K): Os animadores da série animada Naruto muitas vezes me elogiam pelos meus projetos, porque eles são loucos, o que torna meu trabalho ainda mais difícil. Pessoalmente, não estou realmente ciente se é bom ou não. Pode parecer óbvio, mas eu queria me distanciar do ninja clichê vestido de preto.
Eu não vejo nenhum motivo em usar uma imagem que já foi usada inúmeras vezes. Então eu tomei a direção oposta. Um rapazinho loiro de macacão, que nem é japonês. Eu queria que meu personagem fosse desnacionalizado, como os personagens de Akira Toriyama. Essa foi a ideia básica.
Depois, há algumas particularidades baseadas em minhas obsessões pessoais, como zíperes. Achei engraçado usar o anacronismo nesse cenário medieval, como as sandálias. Adoro desenhar dedos e pés. Eu devo ser um fetichista de pés e dedos. Ok, isso saiu estranho, eu admito.
Sobre os designs básicos, eu costumava ler algumas revistas de moda e pegava inspirações de algum design de moda que eu gostava para que eu pudesse personalizá-las em meus personagens. Mas eu parei de colocar detalhes, os designs estavam ficando complicados para um mangá semanal.
(E): Você mencionou Akira Toriyama. Com Katsuhiro Otomo, ele é uma das suas maiores inspirações. Você foi muito influenciado por seus estilos e até hoje você tem dificuldades em se distanciar de seus estilos. Hoje, como profissional, como você descreveria os estilos de Otomo e Toriyama, em termos técnicos. E o que resta do trabalho deles hoje?
(K): Otomo e Toriyama me impressionaram no momento em que descobri seus mangás, quando eu era adolescente. Akira Toriyama mudou para sempre os mangás shounen com uma estética pop. Eu tirei muito do Dragon Ball para criar o Naruto. Uma jornada iniciática, o personagem envelhece, ele enfrenta dificuldades incríveis que não podem ser superadas a princípio e ele deve superar essas provações com esforços incríveis e uma história dividida em duas partes principais.
O estilo de Toriyama ainda me impressiona até hoje, e quando criança, passava muito tempo analisando seu estilo. Os corpos não são realistas, são desproporcionais e, às vezes, simplificados ao extremo. Isso pode ser estranheza ou falta de jeito, mas não é. Tudo é definido e tem um propósito.
Ele está tentando criar um efeito: cômico ou dramático. E a maneira como ele desenha seus planos de fundo mostra o quanto Toriyama é um mestre: as proporções e as perspectivas estão no ponto e detalhadas. Há contraste entre seus personagens e fundos que eu realmente gosto, mas não consigo reproduzir. Toriyama é um mestre de efeitos gráficos.
Eu amo o quão fácil é ler seus painéis. Ele desenha suas cenas com um pouco mais de distância do que normalmente é feito, a fim de ampliar o plano, para poder incluir na imagem mais protagonistas e detalhes. Esses painéis mostram o quanto a direção, após a ação e a interação com o plano de fundo são dominadas: cada personagem está no lugar certo, sem contradições. É ainda mais óbvio em sequências de ações, onde há luta, as ações se encaixam perfeitamente uma com a outra e fica tudo muito claro para o leitor entender, diminuindo o esforço para ler!
Muitas vezes me dizem que meu mangá é difícil de ler. Mas a habilidade de Toriyama em dividir a ação e facilitar a leitura é incomparável. E ele usa essa habilidade com uma variedade de enquadramentos, como o ângulo de cima em que ele é excelente.
Otomo também é um mestre incrível. Ele empurrou seu senso estético em uma direção completamente pessoal. Ele cuida de todos os detalhes, mesmo sabendo que o leitor provavelmente não perceberá isso. Eu amo isso dele. Suas obras deixaram uma impressão em mim, como Domu ou Akira.
Para mim, os temas de seus projetos não são óbvios, mas são mais comumente explorados por seus personagens. Akira nunca será superado no que diz respeito a mim. Otomo foi inspirado por Moebius e, no que diz respeito à arte, ele está em outro nível comparado a mim. Não sou páreo e isso não pode ser debatido. E eu nem estou falando sobre sua habilidade na criação de painéis, ritmo e ângulos. O foco sempre muda e ele pode aplicar deformações a cada um dos seus ângulos com uma precisão insultante. Seus ângulos deformados, como em fisheye (olho de peixe), são perfeitos e não são gratuitos.
Eles existem para fazer o personagem se expressar. É como se Otomo tivesse uma câmera digital em seu cérebro, é muito raro em mangás. Ele é o único no Japão, com Tayio Matsumoto, que também pode fazer isso. Não é coincidência ambos foram influenciados por histórias em quadrinhos europeias, Moebius, especialmente. Otomo é o primeiro que eu realmente senti ter conseguido remover a barreira entre mangás e cinema. Domu era como ler um filme, e eu nunca percebi que você poderia fazer isso antes de lê-lo.
(K): Para mim, Naruto não pode existir sem Sasuke, seu oposto. Como cores complementares, eles não podem existir sem um e outro. Naruto quer ser reconhecido e Sasuke não reconhece ninguém além de si mesmo. Se eles conseguirem resolver seus problemas, o relacionamento deles chegará ao fim e esta história não terá nenhum motivo para continuar. Ainda tenho algumas dúvidas, mas tenho a última cena gravada em minha mente. Eu ainda preciso desenvolver o personagem de Obito e tudo estará pronto para o grande final.
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